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A Eucaristia na história da salvação: PALAVRA DE DEUS

Pregação da Quaresma 2022

Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.

A LITURGIA DA PALAVRA

Primeira Pregação, Quaresma de 2022

Entre os vários males que a pandemia da Covid tem causando à humanidade, houve ao menos um efeito positivo do ponto de vista da fé. Ela nos fez tomar consciência da necessidade que temos da Eucaristia e do vazio que cria a sua falta.

A Eucaristia está no centro de todo tempo litúrgico, da Quaresma, não menos que nos demais tempos. É o que celebramos cada dia, a Páscoa diária. Cada pequeno progresso na sua compreensão se traduz em um progresso na via espiritual da pessoa e da comunidade eclesial. Contudo, ela é também, infelizmente, a coisa mais exposta, pela sua repetitividade, a cair na rotina, a se tornar coisa habitual.

Falar da Eucaristia em tempo de pandemia e agora, por acréscimo, com cenas de guerra diante dos olhos, não é um alienarmo-nos da realidade dramática em que vivemos, mas um convite a olhá-la de um ponto de vista superior e menos contingente. A Eucaristia é a presença na história do evento que inverteu para sempre os papéis entre vencedores e vítimas. Na cruz, Cristo fez da vítima o verdadeiro vencedor: “Victor quia victima”, assim define Santo Agostinho: vencedor justamente porque vítima. A Eucaristia nos oferece a verdadeira chave de leitura da história. Nos assegura que Jesus está conosco, não apenas intencionalmente, mas realmente neste nosso mundo que parece escapar de nossas mãos a qualquer momento. Ele nos repete: "Tenha coragem: eu venci o mundo!" (Jo 16:33).

 

A Eucaristia na história da salvação

Que posto ocupa a Eucaristia na história da salvação? A resposta é: não ocupa um lugar, mas a ocupa inteiramente! A Eucaristia é coextensiva à história da salvação. Ela, porém, está presente em três modos diversos, nos três diversos tempos, ou fases, da salvação: está presente no Antigo Testamento como figura; está presente no Novo Testamento como evento e está presente no tempo da Igreja como sacramento. A figura antecipa e prepara o evento, o sacramento “prolonga” e atualiza o evento.

No Antigo Testamento, dizia eu, a Eucaristia está presente “em figura”. Uma destas figuras era o maná, uma outra era o sacrifício de Melquisedec, uma outra ainda era o sacrifício de Isaac. Na sequência Lauda Sion Salvatorem, composta por Santo Tomás de Aquino para a festa de Corpus Christi, canta-se: “As figuras o simbolizam: é Isaac que se imola, o cordeiro que se destina à Páscoa, o maná dado a nossos pais”: In figúris præsignátur, / cum Isaac immolátur: /agnus paschæ deputátur: /datur manna pátribus.  Enquanto figuras da Eucaristia, Santo Tomás chama estes ritos de “os sacramentos da antiga Lei”1.

Com a vinda de Cristo e o seu mistério de morte e ressurreição, a Eucaristia não está mais presente como figura, mas como evento, como realidade. Nós o chamamos “evento” porque é algo historicamente acontecido, um fato único no tempo e no espaço, ocorrido apenas uma vez (semel) e irrepetível: Cristo, “na plenitude dos tempos, uma vez por todas, se manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (Hb 9,26).

Enfim, no tempo da Igreja, a Eucaristia, eu dizia, está presente como sacramento, isto é, no sinal do pão e do vinho, instituído por Cristo. É importante que compreendamos bem a diferença entre o evento e o sacramento: na prática, a diferença entre a história e a liturgia. Deixemo-nos ajudar por Santo Agostinho.

Nós – afirma o santo doutor – sabemos e cremos com fé certíssima que Cristo morreu uma só vez por nós, ele, justo pelos pecadores, ele, Senhor pelos servos. Sabemos perfeitamente que isso aconteceu uma só vez; e, contudo, o sacramento periodicamente o renova, como se se repetisse várias vezes o que a história proclama ter acontecido uma só vez. E, ainda assim, evento e sacramento não contrastam entre si, quase como se o sacramento fosse enganoso e apenas o evento fosse real. De fato, do que a história afirma ter acontecido na realidade, uma só vez, o sacramento renova (renovat) frequentemente a celebração disso no coração dos fiéis. A história desvela o que aconteceu uma vez e como aconteceu, a liturgia faz com que o passado não seja esquecido; não no sentido de que o faz acontecer de novo (non faciendo), mas no sentido de que o celebra (sed celebrando)2.

Precisar o nexo que existe entre o sacrifício único da cruz e a Missa é algo bem delicado e tem sido sempre um dos pontos de maior discordância entre católicos e protestantes. Agostinho usa, como vimos, dois verbos: renovar celebrar, que são justíssimos, com a condição, porém, de serem compreendidos um à luz do outro: a Missa renova o evento da cruz celebrando-o (não reiterando-o!) e o celebra renovando-o (não apenas recordando-o!). A palavra, na qual se realiza hoje o maior consentimento ecumênico, é talvez o verbo (usado também por Paulo VI, na Encíclica Mysterium fideirepresentar, compreendido no sentido forte de re-apresentar, isto é, tornar novamente presente 3. Neste sentido, dizemos que a Eucaristia “representa” a cruz.

Segundo a história, houve, portanto, uma só Eucaristia, aquela realizada por Jesus com a sua vida e a sua morte; segundo a liturgia, ao contrário, ou seja, graças ao sacramento, há tantas Eucaristias quantas são celebradas e serão celebradas até o fim do mundo. O evento se realizou uma só vez (semel), o sacramento se realiza “cada vez” (quotiescumque). Graças aos sacramento da Eucaristia, nós nos tornamos, misteriosamente, contemporâneos do evento; o evento se faz presente a nós e nós ao evento.

As nossas reflexões quaresmais terão por objeto a Eucaristia em seu estágio presente, isto é, como sacramento. Na Igreja antiga existia uma catequese especial, chamada mistagógica, que era reservada ao bispo e era ministrada depois, não antes, do batismo. O seu objetivo era revelar aos neófitos o significado dos ritos celebrados e as profundezas dos mistérios da fé: batismo, crisma ou unção, e, particularmente, a Eucaristia. O que nos propomos fazer é justamente uma pequena catequese mistagógica sobre a Eucaristia. Para permanecer o mais ancorados possível na natureza sacramental e ritual dela, seguiremos de perto o desenvolvimento da Missa em suas três partes – liturgia da palavra, liturgia eucarística e comunhão –, acrescentando no fim uma reflexão sobre o culto eucarístico fora da Missa.

 

Liturgia da palavra

Nos primeiríssimos dias da Igreja, a liturgia da Palavra era separada da liturgia eucarística. Os discípulos, referem os Atos dos Apóstolos, “dia após dia, unânimes, frequentavam o templo”; aí escutavam a leitura da Bíblia, recitavam os salmos e as orações, junto com os outros judeus; faziam o que se faz na liturgia da Palavra; depois se reuniam à parte, em suas casas, para “partir o pão”, isto é, para celebrar a Eucaristia (cf. At 2,46).

Bem cedo, contudo, esta praxe se tornou impossível, seja pela hostilidade da parte das autoridades hebraicas em relação a eles, seja porque as Escrituras tinham então adquirido para eles um sentido novo, orientado todo a Cristo. foi assim que também a escuta da Escritura se transferiu do templo e da sinagoga aos lugares de culto cristãos, assumindo pouco a pouco a fisionomia da atual liturgia da Palavra que precede a oração eucarística. Na descrição da celebração eucarística feita por São Justino no II século, não apenas a liturgia da Palavra é parte integrante dela, mas às leituras do Antigo Testamento se juntaram aquelas que o santo chama “as memórias dos apóstolos”, isto é, os Evangelhos e as Cartas, na prática o Novo Testamento[4].

Escutadas na liturgia, as leituras bíblicas assumem um sentido novo e mais forte do que quando lidas em outros contextos. Não têm tanto a finalidade de conhecer melhor a Bíblia, como quando é lida em casa ou em uma escola bíblica, quanto a de reconhecer aquele que se faz presente no partir o pão, de iluminar a cada vez um aspecto particular do mistério que está por se receber. Isto aparece, de modo quase programático, no episódio dos dois discípulos de Emaús. Foi escutando a explicação das Escrituras que o coração dos discípulos começou a se abrir, de modo que foram depois capazes de reconhece-lo “ao partir o pão” (Lc 24,1ss.). A de Jesus ressuscitado foi a primeira “liturgia da palavra” na história da Igreja!

Segunda característica: na Missa, as palavras e os episódios da Bíblia não são apenas narrados, mas revividos; a memória se torna realidade e presença. O que acontece “naquele tempo”, acontece “neste tempo”, “hoje” (hodie), como ama expressar-se a liturgia. Nós não somos apenas ouvintes da palavra, mas interlocutores e atores nela. É a nós, ali presentes, que é dirigida a palavra; somos chamados a assumir o lugar dos personagens evocados.

Alguns exemplos ajudarão a entender. Uma vez se lê, na primeira leitura, o episódio de Deus que fala a Moisés da sarça ardente: nós estamos, na Missa, diante da verdadeira sarça ardente... Uma outra vez, fala-se de Isaías que recebe nos lábios a brasa ardente que o purifica para a missão: nós estamos prestes a receber nos lábios a verdadeira brasa ardente, o fogo que Jesus veio trazer sobre a terra... Ezequiel é enviado para comer o rolo dos oráculos proféticos: nós nos aproximamos para comer aquele que é a própria palavra feita carne e feita pão.

A coisa se torna ainda mais clara se, do Antigo Testamento, passamos ao Novo, da primeira leitura ao trecho evangélico. A mulher que sofria de hemorragia está certa de ser curada se conseguir tocar a barra do manto de Jesus: o que dizer de nós, que estamos prestes a tocar bem mais do que a barra do seu manto? Uma vez, escutava no Evangelho o episódio de Zaqueu e fui tocado pela “atualidade”. Eu era Zaqueu; eram dirigidas a mim as palavras: “Hoje eu devo ficar na tua casa”; era de mim que se podia dizer: “Ele foi hospedar-se na casa de um pecador!”, e era a mim, após tê-lo recebido na comunhão, que Jesus dizia: “Hoje a salvação entrou nesta casa” (cf. Lc 19,9).

Assim também de cada episódio evangélico. Como não se identificar na Missa com o paralítico ao qual Jesus diz: “Os teus pecados estão perdoados” e “Levanta-te e anda” (cf. Mc 2,5.11); com Simeão, que segura nos braços o Menino Jesus (cf. Lc 2, 27-28); com Tomé, que toca as suas feridas (Jo 20,27-28)? No segundo domingo do Tempo Comum do corrente ciclo litúrgico, há o trecho evangélico em que Jesus diz ao homem da mão paralisada: “‘Estende a mão’. Ele a estendeu e a mão ficou curada” (Mc 3,5). Nós não temos a mão paralisada; porém, temos todos, quem mais e quem menos, a alma paralisada, o coração ressecado. É a quem escuta que Jesus diz naquele momento: “Estende a tua mão! Estende o teu coração diante de mi, com a fé e a prontidão daquele homem”.

A Escritura proclamada durante a liturgia produz efeitos que estão acima de toda explicação humana, à maneira dos sacramentos que produzem o que significam. Os textos divinamente inspirados também têm um poder de cura. Após a leitura do trecho evangélico na Missa, a liturgia convida o ministro a beijar o livro dizendo: “Pelas palavras do santo Evangelho sejam perdoados os nossos pecados” (Per evangelica dicta deleantur nostra delicta).

Ao longo da história da Igreja, eventos de época aconteceram como resultado da escuta das leituras bíblicas durante a Missa. Um jovem ouviu um dia o trecho evangélico em que Jesus diz a um jovem rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem, e segue-me” (cf. Mt 19,21). Entendeu que aquela palavra era dirigida a ele pessoalmente, por isso, foi para casa, vendeu tudo o que tinha e se retirou no deserto. Seu nome era Antão, o iniciador do monaquismo. Muitos séculos depois, em Assis, um outro jovem, há pouco convertido, entrou em uma igreja com um amigo. No Evangelho do dia, Jesus dizia aos seus discípulos: “Não leveis nada pelo caminho: nem cajado, nem sacola, nem pão, nem dinheiro, nem duas túnicas” (Lc 9,3). O jovem se voltou ao seu amigo e disse: “Ouviste isso? É isso que o Senhor que façamos também nós”. E iniciou daí a ordem franciscana.

A liturgia da Palavra é a melhor fonte que temos para fazer cada vez, da Missa, uma celebração nova e atraente, evitando assim o grande perigo de uma repetição monótona que, especialmente os jovens, acham entediante. Os fiéis deveriam poder entender que a palavra de Deus toca as situações reais da vida e é a única a ter respostas às questões mais sérias da existênciaDeus, de fato, tem uma sua palavra para cada ocasião e não deixa de revelá-la ao seu ministro que a pedir humildemente e com insistência.

 

[1] Tomás de Aquino, S.Th., III, q.60, a. 2,2.
[2] Cf. Agostinho, Sermo 112 (PL 38, 643).
[3] Paulo VI, Mysterium fidei (AAS 57, 1965, p. 753ss).
[4] Justino, I Apologia, 67,3-4

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